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De Heidegger a Suhravardi – trechos de uma entrevista com Henri Corbin

Eu acredito que podemos assegurar o triunfo da hermenêutica, significando que aquilo que nós realmente compreendemos, não é nunca outra coisa que não aquilo no qual nós fomos provados (colocados à prova), aquilo pelo qual passamos, aquilo com o que sofremos e trabalhamos dentro de nosso próprio ser. Hermenêutica não consiste em deliberações sobre conceitos, é essencialmente um desvelar ou a revelação daquilo que está acontecendo dentro de nós, o desvelar daquilo que nos faz emitir tal conceito, visão, projeção, quando nossa paixão se torna nossa ação, é um passar pelas coisas ativamente, um esforço profético-poético.

O fenômeno do significado – e isto é fundamental na metafisica de “Ser e Tempo” (livro de Heidegger) – é a ligação entre o significador (aquele que confere significado) e a coisa significada. Mas o que faz esta ligação, sem a qual ambos (significador e objeto significado) permaneceriam simplesmente objetos de considerações teóricas? Esta ligação é o sujeito, mas este sujeito é a presença, presença do modo (nível) de ser para o modo de compreender. Presença, Da-sein (NT – Dasein é um termo cunhado por Heidegger em seu livro “Ser e Tempo” e foi traduzido de várias formas por diversos tradutores, sendo ´presença´ uma das traduções mais utilizadas, mas DaSein literalmente é Ser-ali, ou Ser/Estar-ali, Being-There, Ser no Tempo). Não quero retornar aqui a discussão sobre as razões que, na época, decidimos traduzir Dasein por realidade-humana (realité-humaine). Estou consciente da fraqueza dessa tradução, especialmente quando, por negligencia, o hífen é omitido. Da-sein: Ser-Ali (Estar/Ser-ali, Being-There), isto é entendido. Mas Ser-Ali, é essencialmente estar atuando (enacting = atuar/representar) uma presença, atuação/representação daquela presença através da qual e para qual o significado é revelado no presente. A modalidade desta presença humana deve portanto ser reveladora, mas de tal maneira que, em revelando o significado ela revela a si mesma, e é aquilo que é revelado. E aqui novamente estamos testemunhando a concomitância da paixão-ação. Resumindo, a ligação para qual a fenomenologia dirige nossa atenção é a ligação indissolúvel entre modi intelligendi e modi essendi, entre modos (níveis) de compreensão e modos de ser. Os modos de compreensão estão essencialmente de acordo com os modos de ser. Qualquer mudança no modo de compreensão é necessariamente concomitante as mudanças no modo de ser. (NT – ver a descrição desta relação entre Saber e Ser no livro Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido de Ouspensky cap. 4.)

Nós estamos agora tocando em uma diferença fundamental da passagem – “minha passagem” – de Heidegger para Suhravardi, diferença sobre a qual eu gostaria de concluir. Eu acabei de indicar como o uso da Chave Hermenêutica (clavis hermeneutica) que Heidegger nos propiciou, de maneira nenhuma implica em uma aderência à sua visão de mundo. A hermenêutica procede do “ato da presença” que está significada no Da, de Dasein; sua função é portanto iluminar como, ao compreender a si mesmo, o Ser-Ali humano situa a si mesmo, circunscreve o Da, o situs (local) de sua presença e desvela o horizonte que permanecia, até aquele momento, oculto. A metafisica dos Ishraqium (aqueles que fazem parte da Tradição Ishraq inicada por Suhravardi), e por excelência, daquela de Mulla Sadra (místico filósofo Iraniano do Sec.XVI / XVII), culmina em uma metafisica da Presença. Ao redor desse situs, Heidegger coloca toda a ambiguidade da finitude humanan caracterizada como um “Ser-em direção-a Morte”. Com Mulla Sadra, ou Ibn Arabi, a Presença como eles a experienciam neste mundo – como ela é desvelada pelo “fenômeno deste mundo” vivido por eles – não é aquela Presença cujo fim é a morte, um “Ser-em Direção-a Morte”, mas um “Ser-em Direção- ao Além-da-Morte” (Being-toward-Death e Being-toward-Beyond-Death). Podemos ver claramente que a concepção de mundo, a escolha filosófica pre-existencial, seja ela de Heidegger ou dos Místicos Iranianos, é ela mesma constitutiva do Da de Dasein, do ato de Ser-Ali presente ao mundo e suas variações. Daqui em diante, tudo que resta ser feito é segurar e pressionar esta noção de Presença o mais próximo e intencionalmente que nos for possivel. A que essa presença humana, este Ser-Ali, está presente?

Esta investigação iniciará com a gnose Ishraq. Eles distinguem o seguinte: existe um conhecimento formal que é a forma comum de conhecimento; é produzida através do intermédio de uma representação. E existe um conhecimento que eles designam como um conhecimento presencial que não passa pelo intermédio de uma representação, mas é uma presença imediata, aquilo através da qual o próprio “ato de presença” da alma faz surgir a presença das coisas, e faz presente para si mesma, não mais objetos, mas presenças. É o mesmo conhecimento que eles tipificam como conhecimento “Oriental”, que é ao mesmo tempo o amanhecer (ou madrugada) do Oriente do Ser sobre a alma ou o amanhecer da iluminação da alma sobre as coisas, que ela revela e na qual se revela a si mesma como co-presenças. É importante que sempre conservemos a significação original da palavra Ishraq, o amanhecer e o Oriente do corpo Celestial, o sol nascente. Mas aqui estamos lidando com um oriente que não devemos tentar localizar em nossos mapas geográficos; é a Luz do amanhecer, uma Luz anterior a tudo que é revelado, para todas as presenças, porque é ela que os revela, aquilo através do qual a Presença é.

Portanto, fará toda a diferença quando colocamos a questão da seguinte forma: quais presenças a presença humana torna presente para si mesma quanto atua sua própria presença? Em outras palavras, com quais constelações de presenças o Da de Dasein se circunda quando revela a si mesma para si mesma? A que mundos ela se faz presente em seu estar sendo-ali. Deveria eu me limitar ao fenômeno do mundo analisado em “Ser e Tempo”? Ou deveria eu intuir, aceitar e ampliar minha presença a todos o mundos e “inter-mundos”, como eles são descobertos e revelados a mim pela Presença “Oriental” de nossos Místicos Iranianos? Ao colocar esta questão, estou meramente ilustrando a diferença que salientei anteriormente. Se Heidegger nos ensina a analisar o Da de Dasein, o “ato de presença”, podemos ver que isto de nenhuma maneira implica que os limites do horizonte Heideggeriano impõe-se sobre este “ato de presença”. Por isso eu estava invocando o momento decisivo onde eu fui atraído para níveis da hermenêutica que não estavam contidos na Analítica Heideggeriana, e que estavam à minha disposição. Estou falando de uma dimensão do “ato de presença” no qual nós nos sentimos na companhia das hierarquias divinas de Proclus, o grande neoplatonista, assim como da gnose Judaica, da gnose Valetiniana, da gnose Islâmica. Dai em diante é o futuro ainda-por-vir (yet-to-come), e a dimensão do futuro, que está sendo decidido. Se o “ato de presença” é de fato o futuro incessantemente constituindo a si mesmo no presente, se o processo do vir-a-ser se constituindo como o meu Ser/Estar-Presente é dependente de meu ato de presença, então o que é este ainda-por-vir/vir-a-ser futuro? A escolha não pode ser evitada – a opção filosófica está lá muito antes do processo hermenêutico – pois esta escolha é decisiva: a hermenêutica somente a revela.

Por Gabriel Duarte 22 de abril de 2019
Ouve o canto da flauta
Por Gabriel Duarte 22 de abril de 2019
“Estar no Paraíso e estar neste mundo refere-se a, sobretudo, diferentes modos de ser e de compreender. Significa ou existir em uma realidade verdadeira, ou, ao contrário, ‘estar neste mundo’ – ou seja, passar para um plano de existência que, em relação àquele outro, é apenas uma existência metafórica. Assim, estar neste mundo tem significado apenas em uma perspectiva de deixar aquilo que é metafórico para trás e vir em direção a um ser real.” “Estar neste mundo não tem outro significado que converter sua realidade metafórica em uma verdadeira realidade. Nasir Tusi (um sufi persa do século XIII) deixa claro que podem existir seres que, embora, aparentemente, tenham vindo para este mundo, uma vez que estão aqui, de fato, nunca vieram para cá. Inversamente – e aqui a análise se torna mais perturbadora – existem homens que podemos ver que deixaram este mundo. Eles estão mortos, eles não estão mais aqui. Nós dizemos deles: ‘eles partiram’. Não; na verdade eles nunca deixaram este mundo nem nunca irão deixa-lo. Pois, para deixar este mundo não é suficiente morrer. Uma pessoa pode morrer e permanecer aqui para sempre. A pessoa deve estar viva para deixa-lo. Ou melhor, viver é exatamente isso.” Henri Corbin – Cyclical Time and Ismaili Gnosis. London, 1983.
Por Gabriel Duarte 22 de abril de 2019
Um carregador de água transportava a água de uma fonte até o vilarejo, no qual a vendia. Ele carregava a água em dois grandes potes de barro, presos a uma haste de madeira, de cada lado dos ombros. O pote da direita estava intacto e sempre chegava cheio ao vilarejo, mas o pote da esquerda tinha um pequeno defeito, que o fazia perder parte da água ao longo do trajeto. Um dia, o pote rachado disse ao carregador: – Estou envergonhado pela minha imperfeição e peço-lhe perdão. Perco a água que deveria guardar e isso, verdadeiramente, me mortifica! O carregador olhou para o pote e lhe disse: – Na nossa próxima viagem, peço que olhe à esquerda do caminho, o lado da estrada para onde você está sempre virado. E assim foi que o pote reparou, que aquele lado da estrada, graças ao filete de água que escorria dele, era verde e cheio de flores, bem diferente do outro lado, que permanecia ressequido e sem vida.
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